sábado, 29 de setembro de 2012

Reserva Constitucional Absoluta da Jurisdição Administrativa?

Dispõe o artigo 212º/3 da Constituição da República Portuguesa o seguinte:


Artigo 212º
Tribunais administrativos e fiscais

1. (...)

2. (...)

3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.


Levanta-se o problema, não claramente resolvido por uma interpretação literal deste preceito, de determinar qual o alcance da reserva aqui consagrada: estão os tribunais administrativos e fiscais limitados a apreciar questões de direito administrativo? Por outro lado, são apenas esses tribunais os competentes para julgar tais questões?

O Tribunal Constitucional foi, por diversas vezes, chamado a resolver este dilema, quer em casos de normas atribuidoras de competência para decidir de questões extra-administrativas ou fiscais a tribunais da categoria referida, como na hipótese espelhada de normas conferidoras de competência para julgar questões administrativas e fiscais aos tribunais judiciais. Uma lista, embora não exaustiva, de acórdãos em que o assunto foi debatido encontra-se no ponto 9. do acórdão nº 211/2007 do Tribunal Constitucional (acórdão que usei como base para escrever este post).

Parafraseando o acórdão mencionado, o artigo 212º/3 (que, aquando da sua introdução em 1989, era o artigo 214º/3), ao definir o âmbito material da jurisdição administrativa, não pretendeu estabelecer uma reserva absoluta de competência para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, quer no sentido de limitar tais litígios à esfera dos tribunais administrativos e fiscais, quer no sentido de limitar a competência destes tribunais à apreciação desses litígios. 

Desde que haja uma fundamentação material e que não se descaracterize o "núcleo essencial" de cada jurisdição, são admissíveis desvios pontuais à regra geral criada pela norma da Constituição. O acórdão refere, como exemplos, a possibilidade de se remeter para os tribunais judiciais a apreciação das decisões das autoridades administrativas em matéria de contra-ordenações, os litígios relativos à indemnização por expropriação e o contencioso de actos de registo e notariais. O Tribunal justifica a generalidade presente na norma tendo em atenção o contexto em que surgiu, com a alteração da lei constitucional de '89 "que consagrou a ordem jurisdicional administrativa como de existência necessária e não meramente facultativa".

Em suma, pode concluir-se que a norma constante do artigo 212º/3 não deve ser interpretada literalmente, mas antes como um preceito que estabelece uma competência típica e genérica dos tribunais administrativos e fiscais, através de uma claúsula geral que não pretende estabelecer uma rígida reserva material exclusiva ou excludente (note-se que não se diz que são apenas os tribunais administrativos e fiscais os competentes para julgaremos litígios mencionados). 

Neste sentido, os tribunais administrativos e fiscais poderão ser chamados a decidir conflitos fora do âmbito genérico determinado, tal como poderão os tribunais judiciais ser competentes para resolver questões de Direito Administrativo (respeitados os requisitos mencionados).

Caso não tenha ficado claro ou queiram saber mais, é boa ideia lerem o acórdão referido (essencialmente o ponto 9., em que se aborda este assunto), ou explorarem algum dos outros acórdãos listados nesse.

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