a)
O autor (Dr.
Anacleto) pretende, por um lado, que o tribunal administrativo declare a
invalidade da deliberação camarária de instalação do aterro sanitário perto da
sua quinta e, por outro, que os prejuízos que entretanto lhe foram causados,
por aquela decisão administrativa, lhe sejam devidamente indemnizados.
Ora segundo o artigo
47º nº1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA),
para que possa haver cumulação de pedidos é necessário que haja entre os dois
pedidos uma “relação material de conexão”,
sendo esta definida nos termos do art.º 4º do CPTA. No caso vertente essa “relação material de conexão”, exigida
pelo art.º 47º e definida no art.º 4º, existe e é facilmente demonstrável. Senão
vejamos: o autor pede a anulação de um ato administrativo (art.º 46º nº2, a) do
CPTA), e este pedido principal, pelo disposto no art.º 47º nº1, pode ser
cumulado com outro pedido, nomeadamente com o pedido de reparação dos danos
resultantes da atuação administrativa ilegal (como aliás refere o art.º 47º
nº1, parte final).
Mas será que existe
uma “relação material de conexão”
entre estes dois pedidos?
Com efeito, essa
relação existe porque, de acordo com os critérios do art.º 4º nº1, a), se a
causa de pedir for a mesma e única pode haver cumulação de pedidos (no caso, é
evidente que a causa de pedir é só uma – se não fosse aquela atuação
administrativa ilegal, não haveria ato administrativo a impugnar nem danos a
ressarcir). Esta constatação é ainda reforçada pela alínea a) do nº2 deste artigo,
em que se diz que “é (…) possível cumular (…) o pedido de anulação (…) de um ato administrativo com o pedido de
condenação da Administração ao restabelecimento da situação que existiria se o
ato não tivesse sido praticado”.
Considerando todos
estes elementos, é imperativo concluir que pode haver cumulação de pedidos.
b)
Quanto à situação
descrita na alínea a) desta hipótese b), o prazo de impugnação de três meses,
previsto no art.º 58º nº2, b) do CPTA, só começa a correr a partir do momento
em que houver notificação do Dr. Anacleto, mesmo que haja publicação
obrigatória, conforme o art.º 59º nº1 do CPTA. Se assim é para os casos em que
há obrigatoriedade de publicação, para os casos em que essa obrigatoriedade não
existe (e vamos presumir que, neste caso prático, não há essa obrigatoriedade pois
se existisse ser-nos-ia facultado esse dado, visto que, conforme o art.º 130º
nº1 do Código de Procedimento Administrativo (CPA), ou está estabelecida na lei
a obrigatoriedade de publicidade ou, não estando, essa obrigatoriedade não
existe), o prazo só começa a correr ou com a notificação do interessado ou com
a publicação ou com o conhecimento do ato pelo interessado (art.º 59º nº3).
Ora o Dr. Anacleto foi editalmente notificado em
10/06/2008, mas só regressou a Portugal em 10/09/2008, tendo já caducado o
prazo para impugnar a deliberação camarária. Não obstante, ele ainda pode
impugnar a deliberação administrativa, à luz do art.º 58º nº4, c) do CPTA, uma
vez que já um “justo impedimento”
(ele encontrava-se doente no estrangeiro).
Já quanto à situação descrita na alínea b) desta
hipótese b), o que está em causa é saber, tal como na situação anterior, qual é
o prazo para impugnar. Segundo o art.º 59º nº3, c) do CPTA, se a deliberação
não foi notificada nem publicada (não foi publicada porque a lei não o impunha
– art.º 130º nº1 do CPA), o prazo de impugnação, neste caso, só começa a correr
a partir do conhecimento da deliberação pelo Dr. Anacleto. Assim, o prazo de três
meses, previsto no art.º 58º nº2, b), só começa a correr a partir do momento em
que o Dr. Anacleto tenha conhecimento da deliberação, por isso ele ainda pode
impugnar a deliberação administrativa.
c)
O autor tem
legitimidade para propor esta ação administrativa especial de anulação de uma
deliberação administrativa. Esta afirmação resulta da conjugação dos arts.º 9º
nº1 e 55º nº1, a) do CPTA, em que se diz que “o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação
material controvertida” (art.º 9º nº1), é parte na relação material
controvertida aquele que “alegue ser
titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado
pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55º
nº1, a)).
De acordo com o critério do art.º 55º nº1, a) do CPTA,
critério da lesão de direitos subjetivos, o Dr. Anacleto é parte
legítima porque ele é o principal afetado com aquela decisão administrativa (o
aterro será construído mesmo ao lado da sua residência) e porque ele é titular
de direitos subjetivos que foram lesados com aquela atuação da Administração (como
por exemplo: o direito a um ordenamento do território que tenha em conta quer
os interesses públicos quer os interesses dos particulares – art.º 65º da
Constituição da República Portuguesa (CRP); o direito a um ambiente sadio –
art.º 66 nº 1 da CRP; ou mesmo o direito à saúde – art.º 64º nº 1 da CRP).
Em suma, o Dr.
Anacleto é parte legítima quer quanto ao pedido de anulação quer quanto ao
pedido de indemnização.
d)
O art.º 56º nº1
do CPTA estabelece que “não pode impugnar
um ato administrativo quem o tenha aceitado, expressa ou tacitamente, depois de
praticado”, e no nº2 deste artigo o legislador definiu o que se deve
entender por aceitação tácita (“aceitação
tácita [é a que] deriva da prática,
espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar”).
Resta, portanto, analisar se o Dr. Anacleto, quando
adquiriu a outra propriedade, esta contígua ao aterro, sabendo já que ele se
iria localizar naquele terreno, aceitou, ainda que tacitamente, o ato
administrativo que agora pretende impugnar.
Parece-me que a aquisição de uma nova propriedade
contígua ao aterro constitui uma aceitação tácita daquele ato administrativo,
porque se o Dr. Anacleto não concordasse com aquele ato administrativo iria, à
partida, procurar impugná-lo pelas vias que estivessem ao seu dispor.
Se ele tivesse a certeza de que o ato seria impugnado –
por, por exemplo, o processo já estar a decorrer num tribunal e ser quase certo
que esse tribunal lhe iria dar razão –, então aí o facto de ele adquirir uma
segunda propriedade contígua ao aterro não constituiria, no meu entender, venire contra factum próprio. Isto
porque, a aquisição da segunda propriedade não pode ser considerada, nesta
hipótese que agora proponho, uma aceitação tácita do ato administrativo, mas
sim a mera prossecução de interesses privados pelo particular (o Dr. Anacleto
pode ter, de facto, ponderosas razões pessoais para adquirir aquele imóvel
específico, e como já sabe que o ato administrativo vai ser efetivamente
impugnado, opta por adquirir logo o imóvel – quem sabe se por razões
financeiras: se comprar daí a uns meses fica muito mais caro, por exemplo).
Coisa diferente sucede no caso que temos de resolver.
O Dr. Anacleto opta por adquirir o segundo imóvel sem ter a certeza de
conseguir (e sem sequer ter avançado com um processo para) impugnar a deliberação
camarária. Ou seja, o único dado que ele tinha, quando realizou aquela
aquisição, era que naquela zona se iria situar um aterro sanitário. Se ele,
mesmo sabendo disso, e sem ter reagido contra essa decisão, optou por comprar
um imóvel naquela região é porque não constituía especial prejuízo para ele,
viver ao lado de um aterro (aceitação tácita do ato administrativo), donde vir
depois pedir a impugnação judicial da referida deliberação, traduz uma situação
de venire contra factum próprio, que
não é admissível de acordo com as regras da boa-fé.
Assim, concluo dando razão ao Presidente da Câmara
Municipal da Póvoa do Lanhoso, pois o Dr. Anacleto aceitou o ato administrativo
que agora pretende impugnar.
e)
A cumulação de
pedidos é simplesmente uma opção que é concedida ao autor, no sentido de
permitir a concentração, numa só ação, de duas ou mais pretensões do autor,
reduzindo os inconvenientes de ter de propor tantas ações quantos pedidos. Se a
ação de impugnação não mais puder ser proposta (por caducidade do direito de
impugnação do ato administrativo), nada impede o autor de propor uma ação que
vise a ressarcibilidade dos danos sofridos com aquela decisão administrativa.
No art.º 2º nº2 f)
do CPTA prevê-se a possibilidade de a Administração ser condenada à
reintegração natural de danos e ao pagamento de indemnizações; assim, desde que
o Dr. Anacleto prove que sofreu danos com aquela decisão administrativa, como
ele é parte na relação material controvertida (art.º 9º nº1 do CPTA), será
indemnizado por todos os danos sofridos.