quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Inconstitucionalidade do nº1 do art.º25 da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos


Inconstitucionalidade do nº 1 do art.º25 da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
                                        
Após a revisão constitucional de 1982, procedeu-se à primeira reforma de fundo no Contencioso Administrativo. Desta reforma surgiu a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, LEPTA), pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho.

Com a revisão constitucional de 1982, do nº3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa (a partir de agora CRP) resultou, por um lado, a manutenção do direito fundamental de recurso contra atos definitivos e executórios e, por outro, a necessidade de garantir os direitos dos cidadãos em face da Administração, mesmo não estando em causa um recurso de anulação. Ou seja, esta revisão constitucional traduziu-se num alargamento da proteção subjetiva conferida pelo Contencioso Administrativo, através de outros meios jurisdicionais, como a ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, que vem depois a ser criada pelo legislador ordinário, além do recurso de anulação.

Relativamente à noção de ato administrativo, embora se mantenha a noção de ato definitivo e executório, adota-se um conceção material de ato administrativo, uma vez que se permite a impugnação de decisões individuais e concretas, donde resulta um alargamento do âmbito do controlo jurisdicional a todas as decisões de satisfação das necessidades coletivas.
Não obstante estas importantes alterações na Constituição, o nosso Contencioso Administrativo continuava “Direito Constitucional por concretizar”, como refere Vasco Pereira da Silva[1].

A pergunta que se impõe é a seguinte: por que motivo o Contencioso Administrativo permanecia cristalizado no tempo, se o Direito Constitucional há muito que já havia iniciado o seu processo de “modernização”?

Várias razões históricas podem ser apresentadas para explicar a “velha” noção de ato administrativo e executório, interessa-nos sobretudo a que agora vamos expor.

A ideia de ato administrativo como definitivo e executório está historicamente relacionada com a ideia de uma Administração Agressiva, típica do Estado liberal. Porém, apesar de ter surgido com o Estado mínimo ou liberal, a noção de ato administrativo e executório irá manter-se, na legislação ordinária portuguesa, até 2004, altura da (verdadeira) Reforma do Contencioso Administrativo.

Mas o que é o ato administrativo definitivo e executório?
Marcello Caetano, seguindo a noção autoritária de ato administrativo de Otto Mayer (ato administrativo como definição do Direito no caso concreto) e de Maurice Hauriou (ato administrativo enquanto ato com força executória, isto é, suscetível de execução forçosa), veio definir o ato administrativo como uma “conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para a prossecução dos interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos no caso concreto[2].

Para Marcello Caetano, o ato administrativo, do qual se podia recorrer judicialmente, tinha de ser triplamente definitivo (definitividade horizontal – o ato administrativo de que se pode recorrer é o que consubstancia a conclusão de todo o processo de tomada de decisão pelo órgão administrativo competente; vertical – o ato administrativo de que se pode recorrer é o que é emanado pelo órgão de topo da hierarquia administrativa; e material – o ato administrativo de que se pode recorrer é o ato que define a situação jurídica concreta dos particulares) e executório (ato cuja execução coativa imediata a lei permite, independentemente de qualquer sentença).

Considerando que atualmente, a Administração é, cada vez mais, Infraestrutural, isto é, hoje, mais do que “tarefas de polícia” consubstanciadas numa “agressão” aos direitos dos particulares, a Administração tem a seu cargo tarefas que correspondem à garantia de certas prestações sociais, à orientação e regulamentação de certas atividades, associadas a fins de interesse público, asseguradas por entidades privadas… Enfim, todo um manancial de tarefas e atribuições que mais do que agredir os direitos dos particulares, procuram sim cria condições para a valorização e prossecução desses direitos.

Ora é forçoso concluir que desta nova realidade administrativa, multifacetada, descentrada, emerge a necessidade de “remodelar” a noção de ato administrativo. Será compatível uma noção que vê no ato administrativo um ato definitivo e executório? Será que quando a Administração quando concede a um particular uma bolsa de estudo por mérito está a praticar um ato administrativo e executório?

Como já referi embora a Constituição tivesse “dado um passo à frente”, a legislação ordinária continuava “três passos atrás”. Pois no art.º 25º da LEPTA se dizia assim: “só é admissível recurso dos atos definitivos e executórios”. Perante esta incompatibilidade entre a legislação ordinária e a Constituição, punha-se a questão de saber se se deveria considerar inconstitucional o art.º 25º da LEPTA.

Há quem entenda que não, nomeadamente o Tribunal Constitucional e em geral toda a jurisprudência administrativista. No acórdão nº 499/96, do Tribunal Constitucional, temos tratada esta questão da eventual inconstitucionalidade das normas que estabeleciam o recurso hierárquico necessário.
Em traços muito gerais, “A interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação de deliberação da Direção dos Serviços de Previdência da Caixa Geral de Depósitos, proferida em 12 de Março de 1991, no uso de delegação de poderes conferida pela Administração da Caixa Geral de Depósito. Esta deliberação determinou a suspensão do abono de pensão de preço de sangue, de que beneficiava a recorrente por morte do seu marido, tenente-coronel da Força Aérea, em acidente de serviço, para produzir efeitos até nela se esgotar a indemnização paga por B, Grupo Segurador, no montante de 10.400.000$00, a título de  reparação de danos patrimoniais futuros. A entidade recorrida declarou (…) que a pensão de preço de sangue não é cumulável com a indemnização devida por terceiro responsável destinada a reparar o mesmo dano. Para (…) tal (…), invocou  [que o] ato impugnado [carecia] de definitividade para efeitos de impugnação contenciosa, uma vez que está sujeito a recurso hierárquico necessário, por expressa exigência legal, não conformando, por isso, negativa e imediatamente, a esfera jurídica dos recorrente.” A contestou a suposta falta de definitividade do ato impugnado, embora não lhe tenha sido reconhecida razão nem pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, nem pelo Supremo Tribunal Administrativo, para onde acabou por recorrer.
Decidiu recorrer para o Tribunal Constitucional com o fundamento de que a exigência de recurso hierárquico necessário constante desta norma violaria o direito à pensão do preço de sangue, que [constitui] um "direito social fundamental", consagrado no artigo 63º, nºs 1 e 4, da Constituição”.
O Tribunal Constitucional reconheceu que a questão da eventual inconstitucionalidade das normas que estabeleciam o recurso hierárquico necessário prende-se com a interpretação que se faça do art.º 268º nº4 da CRP (“a decisão da presente questão de constitucionalidade depende, pois, do sentido que se atribuir à norma do artigo 268º, nº 4, da Constituição. Na sua redação atual, tal disposição parece alargar a garantia de recurso contencioso (…) uma vez que prescinde da expressa exigência de que este tenha por objeto um ato administrativo definitivo e executório - exigência que, na verdade, constava do texto primitivo e da versão dada pela Lei Constitucional nº 1/82”).
Porém acaba por concluir que não se pode concluir, porém, que seja hoje inconstitucional qualquer exigência de recurso hierárquico necessário. Quando a interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso, não terá sido violado o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é conformado pelo artigo 268º, nº 4, da Constituição. Nesta situação, a precedência de recurso hierárquico tem como efeito determinar o início do prazo para a interposição de recurso contencioso, sem o restringir nem acarretar a sua inutilidade. Estará em causa, simplesmente, uma ordenação do processo jurisdicional, similar à que resulta do próprio estabelecimento de prazos para a interposição de recurso contencioso (artigo 28º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos), que só não valem relativamente a atos administrativos nulos”.
Ou seja, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional aquela norma.


Se por um lado havia quem entendesse que este tipo de normas não eram inconstitucionais, por outro não faltavam defensores da inconstitucionalidade. É que os argumentos que, em geral eram trazidos à colação pelos defensores da não inconstitucionalidade eram rebatíveis. Vejamos:
A.      Os defensores da não inconstitucionalidade argumentavam que:
1.       a exigência de recurso hierárquico necessário proporcionava à Administração Pública a possibilidade de revogar atos ilegais, e mesmo, mais amplamente do que sucede no recurso contencioso, que é de mera legalidade, a oportunidade de revogar atos inconvenientes, o que beneficia os administrados [3];
2.       essa exigência era instrumental da economia processual, evitando a pendência de recursos hierárquicos desnecessários e racionalizando o funcionamento dos tribunais administrativos;
3.       tal exigência, por fim, não constituía uma verdadeira limitação do direito de acesso aos tribunais adminis­trativos, por ter uma função puramente ordenadora do processo, nunca obstando a que os administrados interpusessem recurso contencioso do eventual indeferimento do recurso hierárquico necessário.

B.      Os defensores da inconstitucionalidade rebatiam, dizendo que:
1.       apesar da imediata interposição do recurso contencioso, a Administração Pública continuava a poder revogar o ato “até ao termo do prazo para a resposta ou contestação da autoridade recorrida" (art.º  47º da LEPTA);
2.       o argumento da economia processual era reversível, visto que a supressão do recurso hierárquico necessário favorecia a celeridade processual, objetivo igualmente valioso na atividade jurisdicional;
3.       só a supressão do recurso hierárquico necessário assegurava o máximo respeito pelas garantias dos particulares, que, para além de se poderem prevalecer imediatamente da via contenciosa, continuariam a poder interpor recurso hierárquico (facultativo).

Outro argumento, esse sim determinante para que possamos tomar parte na discussão, é o apresentado pelos autores que defendem a inconstitucionalidade das normas com conteúdo igual ao da norma do nº 1 do art.º 25º da LEPTA. 
Nos casos em que o particular, antes de recorrer aos tribunais administrativos e fiscais, utilizou o recurso hierárquico (cuja noção está relacionada com a lógica da definitividade vertical – “do ato do subalterno (…) cabe recurso para o superior hierárquico”[4]), o problema da eventual inconstitucionalidade de que tenho vindo a falar não se põe porque o particular, de acordo com a norma do art.º 25º nº 1 da LEPTA, pode sempre recorrer da decisão do superior hierárquico para os tribunais administrativos e fiscais (esse é o pressuposto de que parte a noção de ato administrativo definitivo e executório). Donde, nenhuma dúvida se levanta quanto à garantia de acesso à Justiça Administrativa, que a Constituição (art.º 268º nº4) pretende salvaguardar.
O problema está precisamente nos casos em que o particular, não interpondo atempadamente recurso hierárquico do ato lesivo (note-se que o prazo para o recurso hierárquico necessário é muito curto – art.º 168º nº1 do Código de Procedimento Administrativo: 30 dias), via precludida a possibilidade de recurso contencioso da decisão administrativa. Desta situação emergia claramente uma violação à tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares[5].

É tempo de concluir, por tudo quanto foi dito creio que a melhor doutrina é a que defendia a inconstitucionalidade do art.º 25º nº1 da LEPTA e, bem assim, de todas as normas com conteúdo semelhante. Não obstante esta ressalva, é importante salientar que, hoje, depois da Reforma do Contencioso Administrativo, em 2004, nos podemos orgulhar de ter um contencioso plenamente jurisdicionalizado, em que o acesso à Justiça Administrativa já não está dependente da utilização ou não das garantias administrativas. Foi, portanto, um significativo “passo em frente” na tutela dos direitos dos particulares e na concretização do Direito Constitucional.





Mariana Velosa e Ferreira
140109069

18 de Outubro de 2012

                                                                  





[1] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2ª Edição, 2009, págs. 169 e segs.
[2] SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2003, págs. 629 e segs.
[3] AMARAL, Diogo Freitas, Direito Administrativo, Volume III, Almedina, 1989, págs. 363 e segs.
[4] AMARAL, Diogo Freitas do, Direito Administrativo, Volume III, Almedina, 1989, págs. 235 e segs.
[5] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2ª Edição, 2009, págs. 209 e segs.

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