Inconstitucionalidade do nº 1 do art.º25 da Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos
Após a revisão constitucional de 1982, procedeu-se
à primeira reforma de fundo no Contencioso Administrativo. Desta reforma surgiu
a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, LEPTA), pelo Decreto-Lei
nº 267/85, de 16 de Julho.
Com a revisão constitucional de 1982, do nº3 do
artigo 268º da Constituição da República Portuguesa (a partir de agora CRP) resultou,
por um lado, a manutenção do direito fundamental de recurso contra atos
definitivos e executórios e, por outro, a necessidade de garantir os direitos
dos cidadãos em face da Administração, mesmo não estando em causa um recurso de
anulação. Ou seja, esta revisão constitucional traduziu-se num alargamento da
proteção subjetiva conferida pelo Contencioso Administrativo, através de outros
meios jurisdicionais, como a ação para o reconhecimento de um direito ou
interesse legítimo, que vem depois a ser criada pelo legislador ordinário, além
do recurso de anulação.
Relativamente à noção de ato administrativo, embora
se mantenha a noção de ato definitivo e executório, adota-se um conceção
material de ato administrativo, uma vez que se permite a impugnação de decisões
individuais e concretas, donde resulta um alargamento do âmbito do controlo
jurisdicional a todas as decisões de satisfação das necessidades coletivas.
Não obstante estas importantes alterações na
Constituição, o nosso Contencioso Administrativo continuava “Direito Constitucional por concretizar”,
como refere Vasco Pereira da Silva[1].
A pergunta que se impõe é a seguinte: por que
motivo o Contencioso Administrativo permanecia cristalizado no tempo, se o
Direito Constitucional há muito que já havia iniciado o seu processo de
“modernização”?
Várias razões históricas podem ser apresentadas
para explicar a “velha” noção de ato administrativo e executório, interessa-nos
sobretudo a que agora vamos expor.
A ideia de ato administrativo como definitivo e
executório está historicamente relacionada com a ideia de uma Administração Agressiva,
típica do Estado liberal. Porém, apesar de ter surgido com o Estado mínimo ou
liberal, a noção de ato administrativo e executório irá manter-se, na
legislação ordinária portuguesa, até 2004, altura da (verdadeira) Reforma do
Contencioso Administrativo.
Mas o que é o ato administrativo definitivo e
executório?
Marcello Caetano, seguindo a noção autoritária de
ato administrativo de Otto Mayer (ato administrativo como definição do
Direito no caso concreto) e de Maurice Hauriou (ato administrativo enquanto ato
com força executória, isto é, suscetível de execução forçosa), veio
definir o ato administrativo como uma “conduta
voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e
para a prossecução dos interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos
jurídicos no caso concreto”[2].
Para Marcello Caetano, o ato administrativo, do
qual se podia recorrer judicialmente, tinha de ser triplamente definitivo (definitividade horizontal – o ato
administrativo de que se pode recorrer é o que consubstancia a conclusão de
todo o processo de tomada de decisão pelo órgão administrativo competente; vertical
– o ato administrativo de que se pode recorrer é o que é emanado pelo órgão de
topo da hierarquia administrativa; e material – o ato administrativo de
que se pode recorrer é o ato que define a situação jurídica concreta dos
particulares) e executório (ato cuja
execução coativa imediata a lei permite, independentemente de qualquer
sentença).
Considerando que atualmente, a Administração é,
cada vez mais, Infraestrutural, isto é, hoje, mais do que “tarefas de polícia”
consubstanciadas numa “agressão” aos direitos dos particulares, a Administração
tem a seu cargo tarefas que correspondem à garantia de certas prestações
sociais, à orientação e regulamentação de certas atividades, associadas a fins
de interesse público, asseguradas por entidades privadas… Enfim, todo um
manancial de tarefas e atribuições que mais do que agredir os direitos dos
particulares, procuram sim cria condições para a valorização e prossecução
desses direitos.
Ora é forçoso concluir que desta nova realidade
administrativa, multifacetada, descentrada, emerge a necessidade de “remodelar”
a noção de ato administrativo. Será compatível uma noção que vê no ato
administrativo um ato definitivo e executório? Será que quando a Administração
quando concede a um particular uma bolsa de estudo por mérito está a praticar
um ato administrativo e executório?
Como já referi embora a Constituição tivesse “dado
um passo à frente”, a legislação ordinária continuava “três passos atrás”. Pois
no art.º 25º da LEPTA se dizia assim: “só
é admissível recurso dos atos definitivos e executórios”. Perante esta incompatibilidade
entre a legislação ordinária e a Constituição, punha-se a questão de saber se
se deveria considerar inconstitucional o art.º 25º da LEPTA.
Há quem entenda que não, nomeadamente o Tribunal
Constitucional e em geral toda a jurisprudência administrativista. No acórdão
nº 499/96, do Tribunal Constitucional, temos tratada esta questão da eventual
inconstitucionalidade das normas que estabeleciam o recurso hierárquico necessário.
Em traços muito gerais, “A interpôs,
no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação
de deliberação da Direção dos Serviços de Previdência da Caixa Geral de
Depósitos, proferida em 12 de Março de 1991, no uso de delegação de poderes
conferida pela Administração da Caixa Geral de Depósito. Esta deliberação
determinou a suspensão do abono de pensão de preço de sangue, de que
beneficiava a recorrente por morte do seu marido, tenente-coronel da Força
Aérea, em acidente de serviço, para produzir efeitos até nela se esgotar a
indemnização paga por B, Grupo Segurador, no montante de
10.400.000$00, a título de reparação de danos patrimoniais futuros.
A entidade recorrida declarou (…) que a pensão de preço de sangue não
é cumulável com a indemnização devida por terceiro responsável destinada a
reparar o mesmo dano. Para (…) tal (…), invocou [que
o] ato impugnado [carecia] de definitividade para efeitos de impugnação contenciosa,
uma vez que está sujeito a recurso
hierárquico necessário, por expressa exigência legal, não conformando, por
isso, negativa e imediatamente, a esfera jurídica dos recorrente.” A
contestou a suposta falta de definitividade do ato impugnado, embora não
lhe tenha sido reconhecida razão nem pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, nem pelo
Supremo Tribunal Administrativo, para onde acabou por recorrer.
Decidiu
recorrer para o Tribunal Constitucional com o fundamento de que “a
exigência de recurso hierárquico necessário constante desta norma violaria o
direito à pensão do preço de sangue, que [constitui] um "direito social fundamental", consagrado no artigo 63º,
nºs 1 e 4, da Constituição”.
O Tribunal Constitucional reconheceu que a questão da
eventual inconstitucionalidade das normas que estabeleciam o recurso hierárquico
necessário prende-se com a interpretação que se faça do art.º 268º nº4 da CRP (“a decisão da presente questão de
constitucionalidade depende, pois, do sentido que se atribuir à norma
do artigo 268º, nº 4, da Constituição. Na
sua redação atual, tal disposição parece alargar a garantia de recurso
contencioso (…) uma vez que
prescinde da expressa exigência de que este tenha por objeto um ato
administrativo definitivo e executório - exigência que, na verdade,
constava do texto primitivo e da versão dada pela Lei Constitucional nº 1/82”).
Porém acaba por concluir que “não
se pode concluir, porém, que seja hoje inconstitucional qualquer exigência de
recurso hierárquico necessário. Quando a
interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro,
utilmente, em caso de indeferimento,
recurso contencioso, não terá sido violado o direito de acesso aos tribunais
administrativos, tal como é conformado pelo artigo 268º, nº 4, da Constituição.
Nesta situação, a precedência de recurso hierárquico tem como efeito
determinar o início do prazo para a interposição de recurso contencioso, sem o
restringir nem acarretar a sua inutilidade. Estará em causa, simplesmente, uma
ordenação do processo jurisdicional, similar à que resulta do próprio
estabelecimento de prazos para a interposição de recurso contencioso
(artigo 28º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos), que só não
valem relativamente a atos administrativos nulos”.
Ou seja, o Tribunal Constitucional não julgou
inconstitucional aquela norma.
Se por um lado havia quem entendesse que este tipo de
normas não eram inconstitucionais, por outro não faltavam defensores da
inconstitucionalidade. É que os argumentos que, em geral eram trazidos à
colação pelos defensores da não inconstitucionalidade eram rebatíveis. Vejamos:
A. Os defensores da não inconstitucionalidade argumentavam que:
1. a exigência de recurso hierárquico
necessário proporcionava à Administração Pública a possibilidade de revogar atos
ilegais, e mesmo, mais amplamente do que sucede no recurso contencioso, que é
de mera legalidade, a
oportunidade de revogar atos inconvenientes, o que beneficia os administrados [3];
2. essa exigência era instrumental da
economia processual, evitando a pendência de recursos hierárquicos
desnecessários e racionalizando o funcionamento dos tribunais administrativos;
3. tal exigência, por fim, não constituía uma
verdadeira limitação do direito de acesso aos tribunais administrativos, por
ter uma função puramente ordenadora do
processo, nunca obstando a que os administrados interpusessem recurso
contencioso do eventual indeferimento do recurso hierárquico necessário.
B. Os defensores da inconstitucionalidade rebatiam, dizendo que:
1. apesar da imediata interposição do recurso
contencioso, a Administração Pública continuava a poder revogar o ato “até ao termo do prazo para a resposta ou
contestação da autoridade recorrida" (art.º 47º da LEPTA);
2. o argumento da economia processual era
reversível, visto que a supressão do recurso hierárquico necessário favorecia a
celeridade processual, objetivo igualmente valioso na atividade jurisdicional;
3. só a supressão do recurso hierárquico
necessário assegurava o máximo respeito pelas garantias dos particulares, que,
para além de se poderem prevalecer imediatamente da via contenciosa, continuariam
a poder interpor recurso hierárquico (facultativo).
Outro argumento, esse sim determinante para que
possamos tomar parte na discussão, é o apresentado pelos autores que defendem a
inconstitucionalidade das normas com conteúdo igual ao da norma do nº 1 do art.º
25º da LEPTA.
Nos casos em que o particular, antes de recorrer aos
tribunais administrativos e fiscais, utilizou o recurso hierárquico (cuja noção
está relacionada com a lógica da definitividade vertical – “do ato do
subalterno (…) cabe recurso para o superior hierárquico”[4]), o problema da eventual inconstitucionalidade
de que tenho vindo a falar não se põe porque o particular, de acordo com a
norma do art.º 25º nº 1 da LEPTA, pode sempre recorrer da decisão do superior
hierárquico para os tribunais administrativos e fiscais (esse é o pressuposto
de que parte a noção de ato administrativo definitivo e executório). Donde,
nenhuma dúvida se levanta quanto à garantia de acesso à Justiça Administrativa,
que a Constituição (art.º 268º nº4) pretende salvaguardar.
O problema está precisamente nos casos em que o
particular, não interpondo atempadamente recurso hierárquico do ato lesivo
(note-se que o prazo para o recurso hierárquico necessário é muito curto – art.º
168º nº1 do Código de Procedimento Administrativo: 30 dias), via precludida
a possibilidade de recurso contencioso da decisão administrativa. Desta situação
emergia claramente uma violação à tutela plena e efetiva dos direitos dos
particulares[5].
É tempo de concluir, por tudo quanto foi dito creio
que a melhor doutrina é a que defendia a inconstitucionalidade do art.º 25º nº1
da LEPTA e, bem assim, de todas as normas com conteúdo semelhante. Não obstante
esta ressalva, é importante salientar que, hoje, depois da Reforma do
Contencioso Administrativo, em 2004, nos podemos orgulhar de ter um contencioso
plenamente jurisdicionalizado, em que o acesso à Justiça Administrativa já não
está dependente da utilização ou não das garantias administrativas. Foi,
portanto, um significativo “passo em frente” na tutela dos direitos dos particulares
e na concretização do Direito Constitucional.
Mariana
Velosa e Ferreira
140109069
18 de Outubro
de 2012
[1] SILVA,
Vasco Pereira da, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo
Administrativo, Almedina, 2ª Edição, 2009, págs. 169 e segs.
[2] SILVA,
Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo
Perdido, Almedina, 2003, págs. 629 e segs.
[3] AMARAL,
Diogo Freitas, Direito Administrativo, Volume III, Almedina, 1989, págs. 363 e
segs.
[4] AMARAL, Diogo
Freitas do, Direito Administrativo, Volume III, Almedina, 1989, págs. 235 e
segs.
[5] SILVA,
Vasco Pereira da, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo
Administrativo, Almedina, 2ª Edição, 2009, págs. 209 e segs.
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