O caso I, resolvido na aula de
08-10-2012, e precedido pela análise do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF), levou-nos à análise, em particular, do regime
da responsabilidade civil extracontratual pública.
Pode hoje afirmar-se que, em regra, os tribunais administrativos passam
a ser competentes para dirimir todas as questões de responsabilidade civil
extracontratual que envolvam pessoas coletivas de direito público, não só por
danos resultantes do exercício da função administrativa, mas também por danos
resultantes do exercício das funções do Estado ou do funcionamento da
administração da justiça, bem como as que envolvam a responsabilidade dos
titulares dos órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos,
incluindo ações de regresso contra si intentadas pelas entidades públicas às
quais presta serviço (alíneas g) e h) do art. 4.º n.º 1 do ETAF).
Confere-se assim um estatuto diferente à jurisdição administrativa, que deixa
de ser definida meramente em termos residuais.
Em particular, a atual alínea g)
foi proposta pela Lei 107-D/2003 com o propósito de esclarecer pela positiva as
dúvidas que a redação inicial do preceito apresentava em relação à inclusão no
âmbito de jurisdição administrativa das ações de responsabilidade por atos de
gestão privada das pessoas coletivas de direito público. Compete assim, hoje, à
jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil,
independentemente de saber se tal emerge de uma atuação de gestão pública ou
privada – a distinção deixa de ser relevante para determinar a jurisdição
competente, que será sempre a administrativa. Assim se estabelece que sempre
que as pessoas públicas devam responder extracontratualmente por prejuízos
causados a outrem, o julgamento da respetiva causa pertencerá à jurisdição
administrativa (independentemente, como se disse, da qualificação do ato como
de gestão pública ou privada).
VIEIRA DE ANDRADE, por exemplo, sustenta este alargamento de jurisdição
com base no elemento histórico do preceito, nomeadamente no fato de o ETAF
deixar de excluir expressamente o conhecimento das questões de direito privado.
Em anotação ao ETAF, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE
OLIVEIRA continuam a considerar, no entanto, que a norma se mantém pouco clara
na pretensão de extensão do seu âmbito.
A este propósito, ainda de referir a conclusão do Ac. do STA n.º 018/06,
de 26-10-2006, “Forçoso é, pois, concluir que, após a entrada em vigor do atual
ETAF, os tribunais administrativos são os competentes para apreciar as questões
de responsabilidade civil extracontratual, como é o caso, emergentes da atuação
de órgãos ou respetivos titulares de pessoas colectivas de direito público no
exercício da função pública”.
Duas outras questões se podem levantar relativamente, em particular, à
alínea g) do art. 4.º n.º 1 do ETAF:
1. A alínea parece excluir da competência dos
tribunais administrativos a responsabilidade emergente de fatos da função
política - cujo julgamento caberia assim aos tribunais judiciais. Esta será a
interpretação mais literal da norma, dado que esta dispõe “incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da
função legislativa”.
No entanto, e numa lógica de alargamento,
como é aliás defendida, por exemplo, por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, pode dizer-se que
compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de
responsabilidade civil extracontratual emergente da atuação de órgãos da
Administração Pública – uma competência genérica para apreciar todas as
questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de
direito público e que desta forma abarcaria também a função política, por ainda
respeitar a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos. Desta forma,
as funções referidas na norma são-no a título meramente exemplificativo,
naquilo a que o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA refere como a consagração de
um regime de unidade jurisdicional plasmado também no que se refere ao
contencioso de toda a responsabilidade civil pública (a par do já referido
abandono da distinção entre gestão pública e privada).
2. A expressão “nos termos da lei, haja lugar a
responsabilidade” pode levantar também algumas dúvidas, nomeadamente se interpretada num
sentido mais literal (em vez da mera referência à “responsabilidade” das
pessoas coletivas públicas). Conforme indicado na aula, alguma doutrina parece considerar
que um litígio desta índole deveria, em primeira ordem, ser da competência dos
tribunais judiciais, de forma a averiguar previamente da existência de
responsabilidade.
Parece, como defendido pelo Professor
VASCO PEREIRA DA SILVA na aula supra-citada, que tem de se fazer um
entendimento alargado no sentido de, em casos de responsabilidade
extracontratual das pessoas coletivas de direito público, determinar como
competente a jurisdição administrativa (e apenas esta).
Também a meu ver, não faz nenhum sentido
que um tribunal judicial chame a si a competência prévia para averiguar da existência de responsabilidade civil para depois os tribunais administrativos
conhecerem da questão.
A expressão “haja lugar a
responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público”
não deve ainda ser interpretada de modo a que a jurisdição administrativa só tenha
lugar nos casos em que sejam as entidades públicas a ocupar a posição de réus –
e não quando ocupem o lugar de autoras (como parecem sugerir alguns autores). Como questiona o Professor VASCO
PEREIRA DA SILVA, como é possível que uma relação jurídica possa ser simultaneamente
qualificada como administrativa e não administrativa para efeitos contenciosos,
consoante a posição ocupada pela pessoa coletiva pública?
AMARAL, Diogo Freitas do e ALMEIDA, Mário Aroso de - Grandes Linhas da
Reforma do Contencioso Administrativo, 2002.
ANDRADE, José Carlos Vieira de - A Justiça Administrativa (Lições), 2005.
OLIVEIRA, Mário Esteves de e OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de - Código
de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos
e Fiscais Anotados, 2004.
SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, 2009.
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