Processos Urgentes –
Intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias
Análise do Acórdão
do Supremo Tribunal Administrativo, de 30.10.2008, P. 0878/08
A
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é um dos quatro
tipos de processos urgentes consagrados no Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA). Esta modalidade processual vem dar resposta a situações
em que uma certa celeridade é necessária na obtenção da decisão de mérito.
Trata-se, como se depreende do anteriormente dito, de um tipo de processo principal; daí a emissão de
uma decisão de mérito. As situações abrangidas por este tipo processual
aproximam-se e, muitas vezes, confundem-se com aquelas em que o meio adequado à
prossecução do fim desejado é a instauração de uma acção principal, dita
“normal”, associada a uma providência cautelar. A diferença está no facto de
estas intimações apenas poderem ser utilizadas, precisamente, se no caso concreto
não for possível ou suficiente para alcançar o objectivo pretendido o
decretamento de uma providência cautelar. É este, aliás, um dos
pressupostos exigidos pelo art. 109º, nº1 do CPTA. Quanto aos demais, que já
foram enunciados de forma mais ou menos explícita, consistem na celeridade
da decisão, decisão essa que deve impor à Administração uma conduta
positiva ou negativa, e que seja indispensável para assegurar o
exercício em tempo útil de um direito, liberdade ou garantia.
Quanto
à urgência, ela é relativa, tendo de ser apreciada levando em conta o caso
concreto. Mas é também concreta, ao contrário do que acontece relativamente aos
outros processos urgentes previsto no Código, em que a lei presume
abstractamente a urgência, dentro dos respectivos limites. Em relação ao que se
pode incluir (ou não) na categoria de direitos, liberdades e garantias, entende
o Prof. Vasco Pereira da Silva que se deve abrangê-la a todos os direitos
fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa.
Têm
legitimidade para este tipo de acções os titulares dos direitos, liberdades ou
garantias em causa. Quanto ao conteúdo do pedido, consiste, como já foi
referido, na condenação da Administração na adopção de uma conduta positiva ou
negativa. Nos artigos 110º e 111º do CPTA, o legislador estabelece três tipos
de tramitação processual para este tipo de intimações, organizando-os por
complexidade e urgência. Optou-se pela seguinte divisão: processos simples e de
urgência normal (art. 110º, nºs 1 e 2); processos complexos e de urgência
normal (art. 110º, nº 3), e situações de especial urgência (art. 111º).
Relativamente à execução das sentenças, aplicam-se as regras gerais de execução
de sentenças condenatórias.
No
Acórdão do STA, de 30-10-2008, o autor, presidente da direcção de um clube de
futebol, que recorre de uma decisão do TAF (Tribunais Administrativos e
Fiscais) de Lisboa, propõe uma intimação deste tipo. Está em causa a
transposição de transcrições de escutas telefónicas efectuadas no âmbito de
processos-crime, em que o autor foi arguido, para um processo disciplinar,
instaurado contra si, e todos com fundamento nos mesmos actos de corrupção
desportiva. Os processos-crime precederam cronologicamente o processo
disciplinar, mas os primeiros foram arquivados, enquanto que no segundo houve
decisão punitiva, emitida LPFP (Liga Portuguesa de Futebol Profissional), da
qual o autor desta acção recorreu para o Conselho de Justiça da Federação
Portuguesa de Futebol. O que o autor vem pedir é que sejam desentranhadas imediatamente
do processo disciplinar as referidas transcrições, invocando a violação dos
seus direitos à palavra e à reserva da vida privada. Subsidiariamente, pede
ainda que, se este pedido não proceder por considerar o tribunal considerar não
ser a intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias o meio
adequado ao caso, se faça a convolação do mesmo num pedido de providência
cautelar.
Para
fundamentar o seu pedido principal, alegou o autor estarem reunidos os
pressupostos do mesmo, e que já foram também acima referidos, em abstracto.
Quanto à existência do direito a proteger, invoca A. os seus direitos à palavra
e à reserva da vida privada. Estando em causa a transcrição de escutas
telefónicas, entende-se facilmente a razão de ser de se invocarem estes dois
direitos, já que estão em causa informações privadas e a sua possível
divulgação. Quanto à necessidade da emissão célere de uma decisão de mérito,
afirma o autor ser este um tal caso já que pretende que nenhum dos responsáveis
pelo desenvolvimento do processo disciplinar entre em contacto com o conteúdo
das escutas, e entende também não ser uma providência cautelar suficiente para
assegurar o seu direito. Finalmente, condena-se a Federação Portuguesa de
Futebol a desentranhar as transcrições do processo disciplinar, preenchendo
assim o requisito de condenar a Administração a uma conduta positiva ou
negativa (no caso, positiva).
O
STA concordou com esta posição, considerando que só através da intimação pedida
o autor poderá alcançar a sua pretensão, e não através de uma providência
cautelar. Não considerou assim o TAF de Lisboa. A sentença recorrida entendeu “que
a lesão que decorreria da existência no processo disciplinar de um meio de
prova alegadamente ilegal poderia ser reparada através de outros meios
processuais que não o processo de intimação”. Afirmou ainda “que a situação ora
em causa não se revestia de especial urgência já que essa urgência não poderia
advir do facto do Conselho de Justiça (…) poder entender que as mencionadas
escutas deviam ser admitidas e valoradas”. Apesar disto, também não concordou
com a convolação do pedido numa providência cautelar por considerar a lesão
como reversível, afirmando ainda ser a acção administrativa especial de
condenação à prática de acto devido o meio adequado ao caso.
Num
interessante voto de vencido, o Juiz Conselheiro Madeira dos Santos defende,
entre outros aspectos, que esta intimação consiste numa forma de levar o tribunal
– poder jurisdicional – a interferir no exercício do Conselho de Justiça, que corresponde
ao exercício do poder administrativo. Considera ainda ser exagerado e,
consequentemente, desadequado, o recurso à intimação por considerar não estar
em causa nenhum direito, liberdade ou garantia que o exija. Isto porque a
preocupação do autor é a divulgação do conteúdo das escutas telefónicas, e não
a sua forma de obtenção, porque nem o poderia ser, já que esta foi lícita. Mas ao
fazer isto está a separar a dimensão da obtenção da dimensão da divulgação das
escutas, o que este Juiz Conselheiro considera não ser correcto, entendendo reconduzirem-se
ao mesmo. Assim sendo, e sendo as escutas lícitas, defende a falta de direito
invocável, apesar de entender ser inadmissível ter em conta escutas telefónicas
obtidas no âmbito de um processo-crime. Conclui afirmando que “confirmaria a
sentença recorrida e negaria o pedido de intimação”.
Da
análise deste caso, consegue-se ver as dificuldades que este meio processual
pode levantar. Estão em causa conceitos e realidades de, por vezes, difícil
concretização e objectividade (urgência, direito fundamental…), o que torna a
sua aplicação pouco fácil e linear. A sua delimitação, principalmente em
relação às providências cautelares, é de extrema importância, visto a
procedência de uma intimação ter como resultado uma decisão de mérito, ou seja,
a resolução do litígio. Daí a relevância da análise exaustiva dos seus
pressupostos e da sua verificação.
VIEIRA DE ALMEIDA, José Carlos, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 11º ediçaõ, 2011
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